terça-feira, 27 de maio de 2014

Conto e Crônica

O Beijo. (Texto 1)

Martha Medeiros

Na primeira página de um site, o convite: “Você viu? Mulheres fazem fila para beijar rapaz!” Adivinha se não era carnaval em Salvador. Estavam lá diversas fotos do garanhão beijando uma, depois a outra e a mulherada em fila aguardando a vez. Parece divertido, mas não é novidade: acontece em tudo o que é festa aberta, em qualquer época do ano. Todo mundo beijando todo mundo, uma delícia de descomprometimento. Nem evolução, nem involução, apenas mais uma coisa que se dessacraliza diante dos nossos olhos.
O beijo.
Dizem que o primeiro beijo não se esquece, e eu realmente nunca consegui esquecer do meu primeiro, e olha que eu tentei. Foi um desastre, um desacerto, uma tentativa malograda de encaixe, até que veio o segundo e, aí sim, choveram estrelas. Desde então, o beijo passou a fazer jus à sua fama de grande astro de um encontro amoroso.
Para quem, como eu, não chegou a viver esta onda de banalização do beijo, para quem beijava só quando estava apaixonado, ou, vá lá, com um ficante de vez em quando (e não mais de um por noite, e tampouco ficar todas as noites, pois tínhamos que sossegar o pito, como diziam nossos pais), enfim, para quem não viveu este oba-oba, o beijo segue sendo a confirmação de uma atração recíproca. E personalizada. Especial como raros momentos o são.
Paixões se iniciam de repente. Você troca e-mails com alguém sem a menor intenção de rolo, e então, sem mais nem menos, passam a flertar um com o outro, o jogo da sedução começa. Ou você é amiga de um cara sem jamais passar pela cabeça ir além da amizade, mas um belo dia, do nada, pinta um clima, que confusão. Ou então você é apresentada a uma pessoa numa festa e se encanta à primeira vista, e a partir daí fica mentalizando estratagemas para um segundo encontro e, quem sabe, um terceiro e um quarto. Principalmente um quarto.
Bom, há várias maneiras de se iniciar um romance, mas enquanto o primeiro beijo não acontece, existe apenas uma intenção, uma possibilidade, um quem sabe. Olhares, telefonemas, torpedos, tudo isso não passa de aquecimento, e pode esfriar antes mesmo que aconteça alguma coisa. Que alguma coisa? Ora, do que estamos falando aqui, criatura? Do beijo!!!! Quem não se lembra do final de Cinema Paradiso? Nenhuma cena de sexo nos emocionaria daquele jeito.
O primeiro beijo de uma nova relação: quando será, e onde? Quando ele vier me deixar em casa? Dentro do cinema? No meio de um papo, inesperadamente? Ah, que cruel e excitante é esta vida. Aguardar pelo primeiro beijo, aquele beijo que vai atestar: sim, não era uma fantasia, ele estava mesmo a fim de mim todo este tempo, e eu, nem se fala. Se não estava, fiquei. O beijo, uau! O detonador de toda história de amor, ou de uma ilusão de amor, que seja.
Depois vinha o desenrolar dos acontecimentos, mas deixemos pra lá o depois. Não é importante. O que nos deixava ligadinhas era a expectativa do primeiro beijo, que valia por um carimbo, um atestado, um apito do juiz: começou, tá valendo. Então algo se iniciava.
Sou ficcionista, mas não a ponto de delirar. Era bem assim, crianças.
Medeiros, Martha. O Globo. 2006.
***

O Primeiro Beijo. (Texto 2)

Clarice Lispector.

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? - perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.

Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...

Ele se tornara homem.


 ATIVIDADE.

1ª - Por que o texto 1 pode ser considerado uma crônica?
2ª - De que tema trata o texto 1?
Que fato motivou a autora a escrever sobre esse tema? 
3ª - Onde e quando ocorrem os fatos no texto 2? Quem é o personagem principal dessa história?  
4ª - Ainda sobre o texto 2: Como o personagem se sentia? O que acontece a esse personagem? 

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